Casa Moura: um ano a acolher menores refugiados na Covilhã
Artigo assinado por Sandra Invêncio, da Mutualista Covilhanense.
Gabriel (nome fictício), agora com 18 anos, tem a cruz de Cristo tatuada na parte interior do pulso, uma prática ancestral dos cristãos no Egipto. É “cristão copto”, o que literalmente significa “cristão egípcio”. Num país onde mais de 80 % da população é muçulmana, os “coptos” constituem uma minoria étnico-religiosa que tem sido perseguida e até chacinada, pertençam à Igreja Católica Copta ou à Igreja Ortodoxa Copta. Gabriel, católico, deixou tudo para trás em 2019, o país e a família, rumo à Grécia, à procura de um país onde pudesse professar livremente a sua fé.
Após um ano e dois meses na dura realidade do campo de refugiados de Vial (Chios), chegou a Portugal a 15 de dezembro do ano passado, juntamente com outros menores de idade na mesma situação, os primeiros inquilinos da Casa Moura, a Casa de Acolhimento Especializada (CAE) que a Mutualista Covilhanense tem a funcionar desde então na cidade da Covilhã, vocacionada para receber Crianças e Jovens Estrangeiros Não Acompanhados (CJNA), ou seja, que chegam à Europa sem os pais ou adultos que por eles sejam responsáveis – ao abrigo de um compromisso assumido pela Estado português perante a União Europeia.
A CAE da Mutualista Covilhanense, que recebeu até agora 25 jovens, entre os 16 e os 18 anos, é uma das cinco do género criadas no país para o efeito, juntamente com as de Lisboa, Cascais, Braga e Nazaré, todas geridas por instituições do Terceiro Setor, sendo a da Covilhã a única mutualidade.
No grupo de Gabriel veio Omar (também nome fictício). Omar, igualmente com 18 anos agora, muçulmano e originário do Paquistão, tem uma história que faz lembrar a emigração portuguesa dos anos 60/70: foi a pobreza extrema que o levou a sair do país, à procura de uma vida melhor.
Omar conta, num português bastante fluído para quem está em Portugal há apenas um ano, que tudo começou com a morte da mãe. O pai voltou a casar e a partir daí surgiram conflitos familiares, com a sua situação financeira a agravar-se, assim como a das três irmãs mais novas, atualmente com os avós. Conseguiu chegar à Grécia através de contrabandistas, por terra, a quem depois não pôde pagar por não ter dinheiro, o que levou até as autoridades gregas a colocarem-no sob custódia de proteção num centro fechado. “Voltar ao Paquistão? Não, só para visitar”, afiança Omar.
Hoje, Omar trabalha, é ajudante de cozinha, e todos os meses envia dinheiro às irmãs. “Para todos nós, estar aqui nesta Casa e nesta cidade é uma grande oportunidade”, salienta Omar, em tom de gratidão, referindo-se aos restantes inquilinos da Casa. Diz que está “preparado” para sair da Casa Moura e ganhar autonomia total. Quer continuar a estudar (fez praticamente 12 anos de estudos no Paquistão) e ao mesmo tempo trabalhar para continuar a ajudar as irmãs. “E talvez um dia ser polícia”, acrescenta, entre sorrisos. Já Gabriel, divide os seus dias entre a Covilhã e o Fundão, onde frequenta o curso de Técnico de Cozinha / Pastelaria na Escola Profissional.
Às histórias de vida de Gabriel e Omar juntam-me mais 23, todas muito particulares. Cada jovem traz consigo uma bagagem interior muito sua, sempre distinta das demais. Há quem tenha feito quilómetros enfiado na bagageira de um carro, quem tenha temido pela vida na travessia do Mediterrâneo num barco sobrelotado e quem tenha chegado exausto à Europa depois de dias e dias a fio a caminhar. Há relatos de exploração, de rapto, de extorsão e de violência, sobretudo física. Uns fogem da guerra e do terrorismo, outros da perseguição política ou religiosa, da ameaça de morte, da pobreza, do trabalho infantil... Há até quem, na sua ainda curta vida, tenha sido já sem-abrigo. Vêm da Síria, do Bangladesh, do Paquistão, do Iraque, do Egipto, da Somália, da Palestina, do Afeganistão e da Argélia.
A missão da Mutualista Covilhanense “passa por acolher estes jovens, tendo em conta a especificidade de cada um e o seu percurso de vida, assim como as diferenças culturais, com recurso a uma equipa especializada, e depois promover a sua integração e autonomização”, explica Nelson Silva, presidente da Direção da Associação, ao elucidar que “para cada um deles existe um projeto de vida”.
Para cumprir esta missão, a Mutualista Covilhanense conta com recursos humanos altamente qualificados, mais de 20 profissionais, entre os quais psicólogos, tradutores, educadores, entre outros, que formam as equipas técnica, educativa e de apoio.
O acolhimento é feito num edifício que a associação mutualista recuperou em 2020 no centro da Covilhã, sua propriedade, com três pisos, que inicialmente se destinava a fins turísticos, cujo projeto não avançou justamente para dar lugar à Casa de Acolhimento Especializada. “Esta é uma causa nobre e, por isso, a Mutualista Covilhanense decidiu na primeira hora recuar com o projeto turístico e aceitar o convite que lhe foi endereçado pelo Alto Comissariado para as Migrações e pela Direção-Geral da Segurança Social para atuar na área da ajuda humanitária”, refere Nelson Silva. O edifício, estreado pelos jovens, tem sete dormitórios, uma cozinha, três copas, sala de convívio, sala de jogos, ginásio, sala de informática, gabinetes técnicos e espaços exteriores.
Na Casa Moura, o acolhimento e acompanhamento é personalizado. Cada jovem tem um educador social. Todos têm aulas de português, frequentam as escolas da cidade e envolvem-se nas tarefas da Casa, como a limpeza dos quartos, lavar e passar as suas roupas ou cozinhar. Além disso, participam nas atividades lúdicas e outras desenvolvidas pelas equipas, dentro e fora de portas, de acordo com um plano de atividades semanal.
Depois, com o tempo, chegados à idade adulta, vem a inserção no mercado de trabalho e a autonomização. Para facilitar este processo, “a Mutualista Covilhanense tem vindo a desenvolver um projeto com vista à criação de uma nova resposta social, paralela à Casa Moura e, simultaneamente, também complementar”, adianta Nelson Silva, ao precisar que se trata da “criação de apartamentos de autonomização localizados no centro da cidade, a partir de imóveis que a associação possui”. O presidente da Mutualista Covilhanense revela que o primeiro, um T3, “já tem luz verde da Direção-Geral da Segurança Social para entrar em funcionamento, o que deverá acontecer no início de 2022”, para onde se deverão mudar três dos jovens da Casa Moura.
Em jeito de balanço deste primeiro ano de atividade da Casa de Acolhimento Especializada, Nelson Silva fala num projeto que “tem sido tão desafiante quanto enriquecedor”. “Com este nosso contributo no campo da ajuda humanitária e de emergência, estamos a ajudar a mudar vidas e isso é muito gratificante para todos nós, para todas as nossas equipas que muito se têm dedicado à causa”, acrescenta.
O artigo foi originalmente publicado na Revista Mut número 13.
publicado em 30-03-2022 | 09:03