Mutualismo: o caso de Guimarães
A chegada da máquina a vapor, mola propulsora da “Revolução Industrial”, empurrou o século XIX para adaptações sociais transversais: desde a mecanização da agricultura, a mobilidade de pessoas e bens - com o comboio - e também na forma de relacionamento dos Homens entre si. Na verdade, com a dita Revolução, nasceu também o conceito de capitalismo. A ideia do Homem burguês, endinheirado, detentor do capital e consequentemente investidor de diversos meios de produção, desenvolveu a teoria de acumulação de riqueza através do recuso assalariado de outros Homens que – empurrados no êxodo rural – procuravam novas formas de subsistência. Rápido se percebeu que os excessos capitalistas, sobretudo na indústria, postergaram várias gerações à exploração voraz e desumana: muitas horas de trabalho, salários miseráveis, privação de alimentação, pouca higiene, falta de cuidados de saúde, mortes prematuras.
As respostas teórico-políticas a esta confrangedora realidade, fizeram-se sentir. Marx e Engels com o Manifesto Comunista, a Igreja Católica, pelo Papa Leão XIII com o que viria a ser o marco fundador da sua doutrina social – a Encíclica Rerum Novarum, o anarquismo através de Proudhon e nos interstícios do comunismo e do anarquismo, o mutualismo. Este último, sem que se lhe atribua uma paternidade definitiva, teve pensadores de relevo que deram o mote à travagem do darwinismo social que sustentava a mente dos opulentos donos do capital.
O geógrafo Russo Piotr Kropotkin com a sua obra “Mutualismo: Um Fator de Evolução”, escrita em finais do século XIX, que certamente bebeu das ideias Proudhonianas, acabou por elencar o quadro teórico conceptual do que viria a ser o Mutualismo: um pré-comunitarismo que não via o Estado como proprietário, nem mesmo um ou dois Senhores a deter os meios de produção; antes, uma frente alargada e comum que pudesse responder de forma cooperativa às várias carestias da sociedade.
Não é, por isso, difícil de adivinhar que o socialismo libertário se tenha apropriado do mutualismo, como modo de assegurar um “estado social” secular já que em muitos países, a ação católica das Misericórdias ia atendendo – pela caridade – ao mínimo do “bem-comum”.
Portugal não foi diferente. Um regime monárquico incapaz de atender às transformações sociais em curso, deu força aos movimentos republicanos que em 31 de janeiro de 1891 deram o tiro de partida à Implantação da República em 1910. Nos meios republicanos, desde meados do século XIX discutia-se a necessidade de criação de respostas sociais e o primeiro “boom” mutualista deu-se.
Em Guimarães, a Associação de Socorros Mútuos Artística Vimaranense – Artística dos Artífices e comungando muito das ideias que atrás referi – iniciou o movimento mutualista no terreno. E depois a Associação Fúnebre Familiar Operária Vimaranense. Em ambos os casos, o mesmo propósito: a entreajuda de artífices e operários que – das parcas condições de vida – se iriam quotizar para atender à mortalidade infantil em massa e às demais carências que as famílias enfrentavam. E em ambas se pode inferir, quanto mais não seja pelos símbolos que as emblemam, ligações a fraternidades filantrópicas, humanistas e com ligações ao operariado.
Aquela que viria a tornar-se hoje, por designação, Associação Familiar Vimaranense, teve – em pouco mais de cem anos – um crescimento assinalável de associados, estando hoje perto dos 18.000. A isto não é estranha a continuidade do fio condutor genealógico das respostas sociais.
De facto, o mutualismo, embora sofresse algum revés no Estado Novo - que não esquecera a marca fundadora deste movimento - em favor das designadas “Casas do Povo”, não se tolheu nos propósitos “genéticos” e foi, paulatinamente, alargando o seu leque de respostas sociais.
À previdência lutuosa inicial, juntou-se – no caso da Associação Familiar – preocupações de resposta nos campos da saúde, da habitação e hoje com respostas protocoladas a muitos outros serviços que os associados podem dispor. Os desafios mantêm-se e as aspirações de proporcionar mais e melhores condições a quem recorre a esta mútua, conservam-se intactos. O desejo de uma Farmácia Social, a projeção de um Centro de Reabilitação, Centros de Dia e outras respostas no âmbito do terceiro setor, são horizontes que estão em construção diária.
Um aprofundamento do mutualismo em Guimarães, não dispensa a leitura da obra “Associação Familiar Vimaranense um Século de Mutualismo”, (2009) coordenada por António Rocha e Costa, com textos de Maria de Belém Roseira, Américo Fernando da Silva Costa e Maria José Meireles.
Embora o mundo, dito globalizado, tenda a constranger - por meio de legislações pró-libertárias que favorecem o lucro – as iniciativas sociais protagonizadas pelas mútuas, as representantes deste movimento, em Guimarães, fervilham, cada uma em sua área, a vontade de continuar a liberdade do povo.
ORLANDO COUTINHO
Presidente da Assembleia Geral Associação de Socorros Mútuos Familiar Vimaranense
publicado em 23-12-2019 | 15:18